terça-feira, 13 de dezembro de 2016

#Tag:contos - O coração delator - Edgar Allan Poe

O conto do Coração Delator, de Edgar Allan Poe, talvez seja um dos mais aprofundados 
na questão psicológica que envolve a mente humana, pois, de uma maneira aterrorizante, 
Poe descreve o sentimento de culpa, trazendo um protagonista com caráter psicopata, 
mas que talvez não seja de fato um psicopata. Ao cometer uma atrocidade, 
a personagem principal sente remorso, coisa que psicopatas não sentem.
Rosa Rezende

Confira abaixo o conto, O coração delator.


Com efeito! – nervoso – tenho andado terrivelmente nervoso, ando com os nervos à flor da pele; por que insistis que estou louco? A doença intensificou meus sentidos – não os destruiu – tampouco os embotou. Acima de tudo, aguçou o sentido da audição. Escutei todas as coisas no céu e na terra. Escutei muitas coisas no inferno. Como, então, posso estar louco? Sede todo ouvidos! E observai com que sensatez – com que calma sou capaz de contar a história toda.
                É impossível dizer em que momento a ideia penetrou em meu cérebro; porém, uma vez concebida, perseguiu-me dia e noite. Objetivo, não havia. Furor, não havia. Eu gostava do velho. Nunca me fizera mal. Nunca me ofendera. De seu ouro nunca tive desejo algum. Acho que era seu olho! Sim, era isso! Um de seus olhos parecia o de um abutre – um olho azul-claro, velado pelo catarata. Sempre que pousava sobre mim, meu sangue gelava; e assim pouco a pouco – muito gradualmente –, tomei a decisão de tirar a vida do velho, e desse modo me livrar daquele olhar para sempre.
                Ora, eis o problema. Imaginais que estou louco. Loucos nada sabem. Mas deveríeis ter me visto. Deveríeis ter visto quão sabiamente procedi – com que cautela – com que precaução – com que dissimulação empenhei-me na tarefa! Nunca fui tão bondoso com o velho quanto na semana toda que antecedeu seu assassinato. E toda noite, perto da meia-noite, eu girava o trinco da porta de seu quarto e a abria – ah, tão suavemente! E depois, após ter aberto uma fresta suficientemente para minha cabeça, introduzia por ela uma lanterna escurecida, toda fechada, fechada, de modo que nenhuma luz dali irradiasse, e então enfiava a cabeça. Ah, teríeis rido em ver com que astúcia eu a enfiava! Eu a movia devagar – muito, muito devagar, de modo que não perturbasse o sono do velho. Levava uma hora para inserir minha cabeça inteira dentro da abertura até um ponto em que conseguisse enxerga-lo deitado em sua cama. Há! – um louco teria mostrado tamanho discernimento? E depois, quando minha cabeça estava dentro do quarto, eu abria a tampa da lanterna cautelosamente – ah, tão cautelosamente – cautelosamente (pois as dobradiças rangiam) – eu a abria o suficiente apenas para que um único facho estreito pousasse sobre o olho vulturino. E assim procedi por sete longas noites – toda noite, por volta da meia noite –, mas encontrava o olho sempre fechado; e era impossível executar o trabalho; pois não era o velho que me perturbava, mas seu Mau-Olhado. E toda manhã, quando o dia raiava, eu entrava audaciosamente em seu aposento, e amistoso, e lhe perguntando como passara a noite. De modo que por aí já vedes como ele precisaria ser um velho bem perspicaz, deveras para suspeitar que toda noite, exatamente à meia-noite, eu o observava enquanto dormia.
                Quando chegou a oitava noite tomei uma precaução mais do que costumeira ao abrir a porta. O ponteiro dos minutos em um relógio seria mais rápido do que minha mão. Nunca antes daquela noite eu sentira toda a extensão de minhas capacidades – de minha sagacidade. Eu mal conseguia conter meus sentimentos de triunfo. Pensar que lá estava eu, abrindo a porta, de pouco em pouco, e que ele nem sequer sonhava com meus atos ou pensamentos secretos. Ora, pensaríeis talvez que recuei – mas não. Seu quarto estava escuro como breu nas trevas espessas (pois as folhas das janelas ficavam bem fechadas, por medo da porta, e continuei a empurrá-la, mais um pouco, mais um pouco.
                Eu já enfiara toda a cabeça, e estava prestes a abrir a lanterna, quando meu polegar escorregou no ferrolho e o velho se aprumou na cama, gritando – “Quem está ai?”
                Permaneci imóvel e sem nada a dizer. Por um hora inteira não mexi um musculo e nesse meio-tempo não o ouvi voltar a se deitar. Ele continuava sentando na cama, escutando atentamente; – exatamente como eu ficava a fazer, noite após noite, de ouvidos esticados para os relógios da morte dentro das paredes.
                Em seguida escutei um ligeiro gemido, e soube que era o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou de pesar – oh, não! –, era o som baixo e abafado que se ergue do fundo da alma quando oprimida pelo medo. Eu conhecia o som muito bem. Inúmeras noites, à meia-noite, quando o mundo inteiro dormia, ele brotara das profundezas de meu peito, intensificando, com seu pavoroso eco, os terrores que me afligiam. Digo que o conhecia bem. Eu conhecia o sentimento que inquietava o velho, e me apiedei do homem, embora em meu íntimo risse. Sabia que ele estava acordado desde o primeiro leve ruído, quando se virara na cama. Seus medos haviam a partir desse momento crescido dentro dele. Estivera tentando imaginá-lo sem fundamento, mas fora incapaz. Estivera dizendo a si mesmo – “Não é nada, apenas o vento na chaminé – apenas um camundongo correndo pelo soalho” ou “foi somente um grilo que cantou uma única vez”. Sim, ele estivera tentando se tranquilizar com essas suposições: mas descobrira que fora tudo em vão. Tudo em vão; porque a Morte, ao dele se aproximar, acossara-o com sua sombra negra, e se lançara sobre a vítima, envolvendo-a. E foi a influência fúnebre da sombra despercebida que o levou a sentir – embora sem nada ver ou escutar – a sentir a presença de minha cabeça dentro do quarto.
                Depois de ter esperado por um longo tempo, muito pacientemente, sem ouvi-lo se deitar, resolvi abrir uma pequena – muito pequena, minúscula – fresta na lanterna. Desse modo a abri – sereis incapazes de imaginar quão furtivamente, furtivamente – até que, finalmente, um único acho tênue como um filamento de teia brilhou através da fenda e pousou sobre o olho vulturino.
                O olho estava aberto – aberto, arregalado – e senti a fúria crescer dentro de mim ao fita-lo. Enxerguei-o com perfeita nitidez – todo ele de um azul desbotado, com véu hediondo a cobri-lo que gelou meus ossos até a medula; mas nada mais podia eu enxergar do rosto do velho ou de sua pessoa: pois dirigia o facho como que por instinto precisamente sobre o ponto maldito.
                Ora, mas já não vos expliquei que o que tomais equivocadamente por loucura não é senão acuidade dos sentidos? – pois agora, digo mais, chegava aos meus ouvidos um som baixo e surdo, como o que faz um relógio envolto em algodão. Esse som, eu também o conhecia bem. Era o batimento do coração do velho. Isso aumentou minha fúria, como as batidas do tambor que estimulam a coragem do soldado.
                Mas mesmo então me refreei e permaneci imóvel. Mal respirava. Segurava a lanterna sem um movimento. Tentava manter o mais fixamente possível a réstia sobre o olho. Nesse ínterim o infernal tamborilar do coração aumentava. Foi ficando mais rápido, mais rápido, e mais alto, mais alto a cada instante. O terror do velho devia ser extremo! Ficava mais alto, e digo mais, ficava mais alto a cada momento! – prestais bastante atenção em minhas palavras? Já vos expliquei como seu nervoso: sou, de fato. E agora, na calada da noite, em meio ao pavoroso silencio daquela antiga casa, um ruído assim tão estranho enervou-me ao ponto de um terror incontrolável. E contudo, por mais alguns minutos, refreei-me e permaneci imóvel. Mas o batimento ficava mais alto, mais alto! Achei que o coração fosse explodir. E então uma nova angustia tomou conta de mim – o som alcançaria os ouvidos de algum vizinho! A hora do velho chegara! Com um poderoso urro, abri a lanterna completamente e pulei no quarto. Ele deu um grito – apenas um. Numa fração de segundo arrastei-o ao chão e puxei a pesada cama sobre ele. Então sorri alegremente, vendo a façanha até ali cumprida. Mas, por vários minutos, o coração seguiu batendo com um som abafado. Isso, entretanto, não me perturbou; não seria escutado através da parede. E enfim cessou. O velho estava morto. Removi a cama examinei o cadáver. Sim ele estava morto, morto como uma pedra. Pousei a mão sobre o coração e a mantive ali por vários minutos. Não havia pulsação. Ele estava morto como uma pedra. Seu olho não mais me incomodaria.
                Se continuais a me reputar louco, não mais o ireis fazê-lo quando descrever as avisadas precauções que tomei para ocultar o corpo. A noite avançava e trabalhei com presteza, mas em silencio. Antes de mais nada desmembrei o cadáver. Decepei-lhe a cabeça, os braços e as pernas.
                Em seguida removi três tabuas do soalho do aposento e depositei tudo em meio aos caibros. Depois recoloquei as pranchas com tal pericia, com tal astucia, que nenhum olho humano – nem mesmo o dele – poderia ter detectado alguma coisa errada. Nada ficou por ser lavado – nenhuma mancha de espécie alguma – nenhum respingo de sangue. Eu fora extremamente cauteloso quanto a isso. Uma tinta recolhera tudo – rá! Rá!
                Após ter dado cabo de todas essas tarefas, eram quatro da manhã – ainda escuro como a meia-noite. Quando o sino badalou a hora, uma batida se fez ouvir na porta da rua. Desci para atender com o coração leve – pois o que eu tinha eu agora a temer? Três homens entraram, e se apresentaram, com perfeita polidez, como agentes de polícia. Um grito ouvido por um vizinho durante a noite; isso levantara a suspeita de algum crime; alguém dera queixa na delegacia e eles (os policiais) haviam sido mandados para dar uma busca na casa.
                Sorri – pois o que tinha eu a temer? Dei as boas-vindas aos cavalheiros. O grito, expliquei, fora proferido por mim mesmo, em um sonho. O velho, acrescentei, se achava ausente, no interior. Levei meus visitantes por toda a casa. Convidei-os a investigar – investigar bem. Conduzi-os, enfim, ao quarto dele. Mostrei-lhe suas posses valiosas, em segurança, intocadas. No entusiasmo de minha confiança, trouxe cadeiras para o quarto, e insisti que ficassem ali descansando de sua faina, enquanto de minha parte, com a irrefreável audácia de meu triunfo perfeito, punha minha própria cadeira exatamente sobre o ponto sob o qual repousava o corpo da vítima.
                Os policiais se deram por satisfeitos. Minha conduta os convencera. Eu estava singularmente à vontade. Sentaram e, enquanto eu respondia animadamente, conversaram sobre coisa familiares. Porém, em pouco tempo, senti que empalidecia e desejei que partissem. Minha cabeça doía e era como se um sino repicasse em meus ouvidos: mas eles continuavam sentados, conversando. O sino tornou-se mais distinto: – continuou, e tornou-se mais distinto: falei com maior desembaraço para me livrar da sensação: mas ela continuou, e ganhou materialidade – até que, finalmente, descobri que o ruído não estava dentro de meus ouvidos.
                Sem duvida eu agora ficava muito pálido; – mas falava com maior fluência, e elevando a voz. Contudo, o som aumentou – e o que podia eu fazer? Era um som baixo, abafado, acelerado – muito parecido com o som que um relógio faz quando envolto em um algodão. Fiquei sem ar – e contudo os policiais nada ouviam. Falei com maior rapidez – com maior veemência; mas o ruído aumentava e aumentava. Fiquei de pé e discuti trivialidades, em tom esganiçado e gesticulado violentamente; mas o ruído aumentava e aumentava. Por que eles não iam embora? Andei pelo quarto de um lado ao outro com pesadas passadas, como que enervado até a fúria sob o escrutínio dos homens – mas o ruído aumentava e aumentava. Oh, Deus! O que podia eu fazer? Espumei – me encolerizei – praguejei! Girei a cadeira sobre o qual estivera sentado, e arrastei-a sobre as tabuas, mas o ruído se elevava acima de tudo e continuava a aumentar. Ficou mais alto – mais alto – mais alto! E mesmo assim os homens continuavam a conversar afavelmente, e sorriam. Era possível que não estivessem escutando? Deus Todo-Poderoso! – não, não! Eles escutavam! – eles suspeitavam! – eles sabiam! – estavam escarnecendo de meu horror! – isso foi o que pensei então, e isso é o que penso agora. Mas qualquer coisa era melhor do que aquela agonia! Qualquer coisa era mais tolerável do que aquela zombaria! Eu não podia suportar aqueles sorrisos de hipocrisia por mais tempo! Senti que tinha de gritar ou morrer! – e então – outra vez! – escutai! Mais alto! Mais alto! Mais alto! Mais alto! – “Patifes!”, urrei, “basta de dissimulações! Admito o que fiz! – arrancai as tábuas! – aqui, aqui! ­– é batimento de seu odioso coração!”

Obs.: conto retirado do livro, Contos de Imaginação e Mistério!

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